terça-feira, 7 de junho de 2011

CRÔNICA: UMA CRÔNICA SOBRE O VIVER


Era seu último dia de vida, mas ele ainda não sabia disso.

Naquela manhã, sentiu vontade de dormir mais um pouco. Estava cansado porque na noite anterior fora se deitar muito tarde. Também não havia dormido bem. Tinha tido um sono agitado, mas logo abandonou a ideia de ficar um pouco mais na cama e se levantou, pensando na montanha de coisas que precisava fazer na empresa.
Lavou o rosto e fez a barba correndo, automaticamente. Não prestou atenção no rosto cansado nem nas olheiras escuras, resultado das noites mal dormidas. Nem sequer percebeu um aglomerado de pêlos teimosos que escaparam da lâmina de barbear.
"A vida é uma sequência de dias vazios que precisamos preencher", pensou enquanto jogava a roupa por cima do corpo.
Engoliu o café e saiu resmungando, baixinho, um "bom dia" sem convicção. Desprezou os lábios da esposa, que se ofereciam para um beijo de despedida. Não notou que os olhos dela ainda guardavam a doçura de uma mulher apaixonada, mesmo depois de tantos anos de casamento. Não entendia por que ela se queixava tanto da ausência dele e vivia reivindicando mais tempo pra ficarem juntos. Ele estava conseguindo manter o elevado padrão de vida da família, não estava? Isso não bastava?
Claro que ele não teve tempo para esquentar o carro nem sorrir quando o cachorro, alegre, abanou o rabo. Deu a partida e acelerou. Ligou o rádio, que tocava uma antiga canção de Roberto Carlos: "detalhes tão pequenos de nós dois..." Pensou que não tinha mais tempo pra curtir detalhes tão pequenos da vida. Anos atrás, gostava de assistir ao programa de Roberto Carlos nas tardes de domingo. Mas isso fazia parte de outra época, quando ele podia se divertir mais.
Pegou o telefone celular e ligou para a filha. Sorriu quando soube que o netinho havia dado os primeiros passos. Ficou sério quando a filha lembrou-o de que há tempos ele não aparecia para ver o neto e o convidou para almoçar. Ele relutou bastante: sabia que iria gostar muito de estar com o neto mas não podia, naquele dia, dar-se o luxo de sair da empresa. Agradeceu o convite mas respondeu que seria impossível. Quem sabe no próximo final de semana? Ela insistiu, disse que sentia muita saudade e que gostaria de poder estar com ele na hora do almoço mas ele foi irredutível: realmente, era impossível.
Chegou à empresa e mal cumprimentou as pessoas. A agenda estava totalmente lotada e era muito importante começar logo a atender seus compromissos pois tinha a plena convicção de que pessoas de valor não desperdiçam seu tempo com conversa fiada.
No que seria a sua hora de almoço, pediu para a secretária trazer um sanduíche e um refrigerante diet. O colesterol estava alto, precisava fazer um check-up, mas isso ficaria para o mês seguinte. Começou a comer enquanto lia alguns papéis que usaria na reunião da tarde. Nem observou que tipo de sanduíche estava mastigando.
Enquanto relacionava os telefonemas que deveria, sentiu um pouco de tontura, a vista embaçou. Lembrou-se do médico advertindo-o, alguns dias antes, quando tivera os mesmos sintomas, de que estava na hora de fazer um check-up. Mas ele logo concluiu que era um mal-estar passageiro que seria resolvido com um café forte sem açúcar.
Terminado o "almoço", escovou os dentes e voltou à sua mesa. "A vida continua", pensou. Mais papéis para ler, mais decisões a tomar, mais compromissos a cumprir.
Saiu para a reunião já meio atrasado. Não esperou o elevador. Desceu as escadas pulando de dois em dois degraus. Parecia que a garagem estava a quilômetros de distância, encravada no miolo da Terra e não no subsolo do prédio. Entrou no carro, deu a partida e, quando ia engatar a primeira marcha, sentiu de novo o mal-estar. Agora havia uma forte dor no peito. O ar começou a faltar... a dor foi aumentando... o carro desapareceu... os outros carros também... os pilares, as paredes, a porta, a claridade da rua, as luzes do teto, tudo foi sumindo diante de seus olhos ao mesmo tempo em que surgiam cenas de um filme que ele conhecia bem. Era como se um filme estivesse rodando em câmara lenta. Quadro a quadro ele via a esposa, o netinho, a filha e, uma após outras, todas as pessoas de que mais gostava.
Por que mesmo não tinha ido almoçar com a filha e o neto? O que a esposa tinha dito à porta de casa quando ele estava saindo, hoje de manhã? Por que não saiu com os amigos no último feriado? A dor no peito persistia, mas agora uma outra dor começava a perturba-lo: a do arrependimento. Ele não conseguia distinguir qual era a mais forte, a da coronária entupida ou a de sua alma se rasgando.
Escutou o barulho de alguma coisa quebrando dentro de seu coração e de seus olhos escorreram lágrimas silenciosas. Queria viver, queria ter mais uma chance, queria voltar para casa e beijar a esposa, abraçar a filha, brincar com o neto... Queria... Queria... Mas não havia mais tempo.

(Roberto Shinyashiki)

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